A Origem (Inception, 2010) tem tudo que um bom filme de ação precisa e algumas coisas das quais ele não precisa. Do lado do primeiro temos bons atores, ótimos efeitos especiais, uma história intrigante, lutas, perseguições e, acima de tudo, altas doses de adrenalina e imaginação. Por outro lado, algumas perguntas ficam sem resposta, como por exemplo, de onde veio essa história de entrar na mente dos outros? Mas isso pouco importa, pois um bom filme deve sempre deixar o espectador em alerta. Quanto mais nos perguntamos sobre o filme, tentando resolver e explicar seus pormenores, mais nos apegamos a ele. O doce prazer de resolver um enigma após longos minutos de especulação. Como nos lembra tricksterianamente Mr Cobb: “Nada é mais insistente que uma idéia.” Assim, qualquer ponto negativo em A Origem é suplantado e perdoado por seu lado positivo, ou seja, vale à pena assistir ao filme. E olha que nem sou tão fã assim do Di Caprio.
O filme nos coloca na mais nova fronteira, ou talvez nem tão nova assim, da imaginação. Ao invés de roubar dinheiro e segredos em cofres, bancos, etc., por que não fazê-lo dentro da própria psique? E se podemos roubar algo da mente de alguém, por que não poderíamos colocar algo lá? Grande pergunta, não?
Outro ponto intrigante da trama: o tempo. Em sua imaginação, o diretor Christopher Nolan, estabeleceu tempos diferenciados para as diversas camadas de uma psique estratificada. Cinco minutos na vida real seriam uma hora no mundo dos sonhos; uma hora em uma primeira camada do sonhos seriam tantas horas em uma camada a mais, um sonho dentro de um sonho, e assim sucessivamente, ao ponto de o tempo de uma vida nas profundezas da psique pudesse ser reduzida a alguns instantes na vida real. Intrigante.
Imaginem o que Dom Cobb poderia fazer se usasse seus poderes para o bem. Já pensaram em um terapeuta que pudesse vasculhar a alma, encontrar os problemas que causam o sofrimento e simplesmente os retirasse de lá, como se eles nunca tivessem existido, ou mesmo colocassem lá novas idéias que nos permitissem lidar melhor com eles. Pura e assustadora imaginação. Será isso um dia possível. Se Nolan é só alguém com muita imaginação ou um visionário não creio que chegaremos a saber. Mais isso é mera especulação.
Mas há algo além no filme. Assim como em Matrix, somos levados a nos perguntar: o que é o real? Como no velho conto chinês do sábio que sonhou que era uma borboleta e quando acordou não mais sabia se era um homem que havia sonhado que era uma borboleta ou uma borboleta que sonhava que era um homem. Será que aquilo que chamamos de real é o real? Podemos realmente enxergar a realidade? Jung nos diz que a psique cria realidade. Em que medida essas duas realidades se entrelaçam e qual das duas podemos realmente chamar “real”? Mas ainda estamos filosóficos demais. Como no filme, precisamos descer mais um nível. Por trás de uma trama mirabolante, efeitos especiais, cenas de ação, desenrola-se calmamente, como um lento tempo da alma, o drama pessoal de Dom Cobb.
Conhecemos a história pessoal de Dom Cobb aos poucos. Primeiro que ele não pode voltar pra casa, depois que há muito não vê os filhos. Mais à frente que as razões disso são que Cobb é acusado da morte de sua esposa ( sim, ela morreu) e, posteriormente, que ela se suicidou após achar que o mundo no qual vivia não era real e que o mundo dos sonhos é que era real. E quando pensamos que entendemos tudo, descobrimos que... Não, claro que não vou contar o final do filme. Basta saber que Cobb se culpa pela morte da esposa e é a projeção desta em seus próprios sonhos que atrapalha todos os seus planos.
Nesse ponto começamos a perceber que A Origem não é apenas mais um filme de ação, mas um intrigante thriller psicológico. Precisamos, como no filme, descer mais um nível.
Para realizar seu mais ardiloso plano, plantar uma idéia na mente de um empresário, Cobb precisará primeiro vencer não as defesas da vítima, mas as suas próprias, pois é a projeção de Mae, sua esposa, que dentro de sua mente sabota todas as suas atividades. Como um bom complexo inconsciente, Mae afeta constantemente as ações de Cobb, interferindo em seus julgamentos, provocando receios, medos, etc. Qualquer semelhança com um processo de análise não é mera coincidência. Aqui o tema do real pode voltar até nós, quando lembramos o quanto emoções inconscientes afetam nossas ações, julgamentos, percepções, alterando aquilo que chamamos de real.
As emoções afetam diariamente nossa relação com a realidade; não é à toa que um dos passos da análise é retirar dos objetos as projeções para que o Eu possa lidar com aquilo que lhe pertence e que ele pensa pertencer ao outro. O diretor Nolan, tricksterianamente, ainda dá à personagem que auxilia Cobb a enfrentar sua própria culpa o nome de Ariadne, uma doce garota que lhe ajudará a sair desse labirinto de emoções.
Na verdade, não estamos, em alguns pontos, tão distantes de Cobb. A realidade na qual vivemos é irremediavelmente preenchida por nossas emoções e afetos, que surgem nas fantasias que tecemos sobre o mundo. Quantas vezes nos agarramos a certas fantasias, a mundos irreais? E quantas vezes nos negamos a ver partes sombrias de nós mesmos, preferindo olhar para o outro lado, nos apegando a uma realidade diferente, mais doce, suave, mesmo que intimamente fantasiosa?
Dom Cobb tentou esconder sua culpa nos subterrâneos de sua alma, mas ela sempre voltou pra lhe perturbar, lhe sabotar, lhe cobrar o preço de seus atos. Talvez isso tudo torne A Origem tão bom. Essa provocação quase despercebida a nós mesmos. Aquilo que você vê é real? Não haverá emoções inconscientes alterando sua percepção agora mesmo, enquanto vê o filme, enquanto julga se gostou ou não desse texto?
Ao longo do filme, Cobb realiza seu mergulho particular, apesar de acompanhado por seu grupo de ladrões, para pagar o preço que é devido e ajustar contas consigo mesmo. Quase um convite feito a cada um de nós. Se isso o conduzirá, ou nos conduzirá, à realidade e não a mais um sonho, nem mesmo o filme conseguirá responder.